Tem gente que acha que a gravidade só serve para derrubar maçãs, outros lembram da época da escola que ela multiplica nossa massa por 10 no planeta Terra e tem gente que sente seu peso mais intenso a cada ano que passa. É, como toda energia, algo invisível a qual vivenciamos através da experiência.
Mônica Caspari, professora de Rolfing, disse uma vez que a “gravidade é a fáscia do universo”. Apesar de não existir materialmente com estrutura de colágeno como é a fáscia, mas é algo continuo que faz com que cada coisa no universo esteja em seu devido lugar.
A energia da gravidade está conosco desde o momento que nascemos até o momento que abandonamos este corpo. Ouvi dizer uma vez que uma das razões do choro do bebê no nascimento tem forte relação com seu assustador encontro desta energia no mundo aqui fora. A verdade é que, para sobreviver, quase todo ser vivo deste planeta tem que aprender a se relacionar com a gravidade para garantir seu desenvolvimento e sobrevivência e esta relação tem tudo a ver como a forma ao qual nos relacionamos com o espaço e com o outro.
Após o nascimento, nosso primeiro trabalho é encontrar a mãe. Provedora de segurança e de alimentação, nossos sentidos e nosso corpo se deslocam em busca do peito, a cabeça se desloca e começa a vencer a gravidade para buscar o que necessita. Com o passar do tempo e as musculaturas se desenvolvendo, o bebê busca coisas no espaço e já orienta o tórax para alcançar o que quer, direcionando seus sentidos e logo em seguida seus braços para buscar e se conectar com as coisas. Nesse tempo, surge a lordose cervical e o empurrar e alcançar dos braços. Nesta primeira fase surge o que chamamos de G’ (G linha), o centro de gravidade superior, contido no tórax.
Ao aprimorar esta capacidade, o bebê passa a orientar seu tórax cada vez melhor, o movimento de rolar começa a surgir e melhora cada vez mais quando ele encontra sua segunda base de suporte: os pés, que permitem empurrar o G’ e o chão contra a gravidade. Começa a surgir então o centro de gravidade inferior, na pelve, chamado apenas de G, que ficará mais claro quando o corpo aprender a finalmente vencer a gravidade e ficar na vertical. Aqui o engatinhar e rolar permite se deslocar e alcançar com mais facilidade.
Quando pés e mãos se relacionam, começa a surgir mais uma curvatura na coluna: a lordose lombar, que ajudará no equilíbrio enquanto a relação entre flexores e extensores do corpo não estiver bem definida e não surgir um eixo central de sustentação. A medida que o suporte de baixo “amadurece” nos deslocamos com a ajuda dos braços, segurando com as mãos para vencer o equilíbrio e queda a qual a gravidade nos impõe.
Finalmente, quando as mãos não precisam mais ser utilizadas e a agora criança vence a gravidade, surge o “eu”. A presença da coluna nesta relação dá a percepção de sí próprio e assim surge a primeira pessoa. Antes disso é bem comum a criança falar de sí própria em terceira pessoa “o nenê”, “a Ana”. A partir daqui, os pés, a pelve (G) e o tórax (G’) passam a relacionar-se um com o outro para que o todo se relacione com a gravidade e a verticalidade.
Até os 3 ou 4 anos, a criança ainda tem uma grande lordose lombar que a ajuda a equilibrar suas massas corporais enquanto a linguagem e os sentidos também amadurecem, o andar ainda não é tão uniforme e se parece mais com sucessões de quedas. A medida que as lordoses lombar e cervical se suavizam, a musculatura profunda do tronco ganha capacidade de sustentar o eixo vertical, desde a parte interna dos pés até a cabeça. A clareza do “eu” e do “outro” se intensifica (algumas mães sofrem) e surgem outros meios relacionais: o dentro e o fora. A relação com o espaço fica mais clara, o corpo ganha contornos e a medida que o tempo passa, o esconderijo da brincadeira de esconde-esconde agora cobre o corpo todo. Daqui para frente, as capacidades coordenativas, finas e grossas melhoram a cada dia e as cognitivas avançam a passos largos. Daqui algum tempo, as direções corporais bem definidas serão base para a alfabetização.
Na puberdade passamos por outra revolução: o corpo cresce muito rápido, o sistema endócrino se desenvolve e o cérebro parece um pisca pisca de ideias e emoções, nada parece ajudar. Com o rápido desenvolvimento corporal, é difícil se dar conta do espaço que se ocupa: as partes trombam nos lugares, a cabeça bate onde não alcançava e a vergonha das mudanças corporais fazem tudo se encolher para não aparecer nem se chocar em nada. Desde então escutamos “ajeite suas costas” mas parece que a gravidade cisma em empurrar a gente para baixo e para a maioria esta guerra segue durante muitos e muitos anos.
Nesta fase, o corpo e todas as suas funções precisam se adaptar aos novos tamanhos e capacidades para não perder seu potencial, tanto físicas quando psíquicas, já que é no corpo e no seu refinamento de sensações que as emoções emergem em suas nuances e complexidades. Os símbolos, metáforas e significados corporais se conectam com as emoções e com o amadurecimento da pessoa como um todo e seu processo de empoderamento.
A “postura correta” é algo que todo mundo fala, mas poucos dizem como é sustentar um corpo que se relacione bem com a gravidade e ao mesmo tempo tenha capacidade mantê-la. Nos ensinam a afastar os ombros, juntar a escápulas e endurecer a barriga mas tudo isto dura tanto quanto uma escultura de papel deixada sob a chuva. Tentamos deixar o papel (musculatura fásica, superficial) mais duro e mais grosso para tentar segurar aquela armadura, porém o que se ganha são movimentos mais curtos, rígidos e superficiais enquanto o centro (musculatura tônica) fica cada vez mais inibido, trazendo disfunções e dores, já que os papéis (ops) de cada um não está sendo bem desempenhado.
A Função Tônica
Hubert Godard introduz uma teoria a qual chamamos de Função Tônica, ela se baseia nos estudos de diversos nomes como Ida Rolf, Wallon, Ajuriaguerra, Laban, Feldenkrais e a biomecânica clássica e está diretamente conectada com a forma com que utilizamos nossas estruturas para lidarmos com a gravidade, nos movimentarmos e nos relacionarmos, o que inclui nossas emoções.
Temos basicamente dois tipos de estruturas musculares: as fásicas, cuja fisiologia natural é para o movimento, já que são fibras feitas para a contração e o relaxamento, tem seu tempo de fadiga e descanso e estão principalmente mas estruturas mais superficiais do corpo, para assim poderem alcançar, empurrar, gerar movimento.
Há também as estruturas tônicas, que tem responsabilidade maior sobre a sustentação do corpo na relação com a gravidade. Fisiologicamente fadigam menos no quesito tempo, o que permitem permanecer em contração e sustentar o corpo na verticalidade e estabilidade. Seus tecidos estão em regiões mais profundas do corpo.
Vamos a um teste: para erguer um dos braços a frente, qual musculatura você acredita que atua para que isto aconteça? Obviamente a musculatura do braço atua, mas há uma musculatura tônica que sustenta o corpo, antes do braço ser elevado, para que ele não caia para frente antes do deslocamento. Neste caso, o sóleo, lá na parte posterior profunda da perna do lado oposto nos fixa em direção do chão. Para haver movimento, existe pré-movimento. Para haver movimento livre em uma direção, deve haver outro na direção oposta.
Godard diz que a musculatura tônica está diretamente relacionada às emoções e suas inibições. Dizemos que a postura é um acúmulo de atitudes, retrata a coleção de histórias que vivemos e retrata como nosso mundo interno se relaciona com o mundo externo.
Independente do que estamos fazendo, estamos constantemente lidando com a preocupação de não cair. Como lidamos com esta constância está diretamente ligado com o que chamamos de postura. A forma com que utilizamos nossa percepção e nossos sentidos moldam como utilizamos nossos corpos no movimento e na estática, que alteram a minha relação com a gravidade.
Lesão e inibição
Godard diz que uma disfunção do corpo pode nascer através de de uma lesão propriamente dita, ou seja, uma estrutura que já está modificada, ou mais densificada por alguma razão e que torna as relações com as outras partes mais incoerente ou por uma inibição da percepção. Imagine como se fosse um carro andando com o freio de mão puxado. O carro até se movimenta, já que o motor é muito mais forte que o freio de mão, mas imagine a quantidade de esforço a mais que o motor terá de fazer, a quantidade de combustível gasto a mais e o quanto todas as peças envolvidas irão se desgastar mais rapidamente ou mesmo se romperem. Em nós seres humanos esta situação nos traz desperdício de energia, desgaste das estruturas (mas não temos peças de reposição no mercado) e dor. Uma disfunção da percepção pode nos levar a uma lesão propriamente dita.
Voltemos a questão da elevação do braço à frente. Já sabemos que há uma musculatura tônica que atua antes de iniciarmos o movimento para que o corpo permaneça estável, que chamamos de pré movimento. Sabemos também que a musculatura tônica se relaciona diretamente com nossas emoções e nossa percepção de mundo interno e externo. Logo, se há uma disfunção na nossa percepção, nosso pré movimento criará uma inibição do movimento, gerando um efeito “freio de mão” nas estruturas. E agora?
Devemos modificar o movimento criando novos padrões, novas inibições ou seria o melhor caminho trabalhar a percepção de como o sistema todo se comporta e de como os sentidos se relacionam entre si e com o espaço?
Peso e direção
Em uma aula com a Lucia Merlino escutei uma frase, que apesar de óbvia me tocou: Para existir uma linha tem que haver dois pontos. Para que um movimento exista, ele tem que ter duas direções, uma em direção do espaço, outro em direção do suporte. O que descansa em direção do chão e ganha suporte quando você realiza movimento?
Quando pensamos movimento, temos uma ideia equivocada de pensar no que deve ser feito para que ele ocorra mais eficientemente. E se ao invés disso pensarmos no que pode deixar de ser feito? O que pode descansar? O que pode ser entregue a gravidade? O que pode se deixar ganhar suporte para que o restante possa se relacionar com o espaço? Na estática também, independente da posição:
Quando deitado, posso pensar: E se minha coluna fosse entregue ao chão enquanto minha respiração pode se abrir para o espaço e sinto todo o ambiente com meus sentidos? Sinto o peso do meu corpo, sinto o cheiro mais distante, escuto o som que vem de todos os lados, vejo o espaço de forma periférica.
Quando em pé ou sentado: E se meus pés ganhassem cada vez mais peso em direção do chão permitindo que minha coluna cresça a cada respiração? Como ficam meus braços quando respiro? Como meu tronco responde a cada respiração que se relaciona com o apoio dos pés? Como está minha visão, audição e olfato, estão presos em um pequeno espaço ou podem alcançar mais adiante?
Todas estas questões nos levam a como nos relacionamos com a gravidade. Será que quando estamos organizando nossos corpos nesta melhor relação, na verdade estamos sintonizando ele com a “fáscia do universo”?
Este texto é uma pequena introdução ao trabalho Hubert Godard e de Rolfistas brilhantes que colaboraram com estes ensinamentos, por isso deixo aqui referências importantes para aprofundamento, todos são encontrados facilmente no Google.
… E para complementar o tema, um poema que conduz à reflexão…
Quão certamente a força da gravidade,
forte como uma corrente oceânica,
toma conta da menor coisa
e a puxa para o coração do mundo.
Cada coisa, cada pedra, flor, criança –
é mantida no lugar.
Somente nós, em nossa arrogância,
forçamos para além do lugar ao qual
pertencemos para uma liberdade vazia.
Se nos rendêssemos
à inteligência da Terra
poderíamos nos erguer enraizados
como árvores.
Em vez disso, nos enroscamos
em nós mesmos
e lutamos, solitários e confusos.
Assim, como crianças, começamos
novamente a aprender com as coisas,
por que elas estão no coração de Deus;
nunca o deixaram.
Isso é o que as coisas podem nos ensinar:
a cair,
pacientemente, confiar em nosso peso.
Até mesmo um pássaro tem que fazer isso
antes que possa voar.
Rainer Maria Rilke,
Em “ O livro das horas de Rilke: Poemas de amor a Deus.
Versos traduzidos por Monica Caspari.